segunda-feira, 7 de julho de 2014

UMA REMINISCÊNCIA DO DR. SAMUEL JOHNSON


título original : A Reminiscence of Dr. Samuel Johnson -
 na United Amateur (Setembro de 1917).

O privilégio de recordar, não importa se de uma forma cansativa ou demasiado extensa, é um dos que é tolerado entre os mais idosos, pois é muitas vezes através dessas recordações que as obscuras ocorrências da História, e as anedotas mais insignificantes acerca de certas personalidades distintas são transmitidas à posteridade.

Muitos dos meus leitores observaram por vezes, ou notaram, um certo fluir antigo no meu estilo de escrita, quando, de fato, me agradou difundir desde a minha infância, entre os membros da minha geração, a ideia fictícia de que eu tinha nascido em 1890, na América. Estou, porém, revolvido a tirar das minhas costas o peso do segredo que até aqui tenho preservado, por receio de que ninguém me acreditasse, e a comunicar ao público um conhecimento verdadeiro dos meus longos anos, a fim de lhe satisfazer o gosto que possa ter por informação autêntica, de uma época com cujas personalidades mais importantes eu desfrutava de uma certa familiaridade. Que se fique a saber, para que conste, que eu nasci na minha propriedade de família no Devonshire, a 10 de Agosto de 1690 (ou, de acordo com os cálculos do novo calendário gregoriano, a 20 de Agosto), tendo presentemente 228 anos. Tendo-me mudado cedo para Londres, vi, em criança, muitos dos homens célebres do reino do rei Guilherme, incluindo o saudoso Sr. Dryden, que se costumava sentar frequentemente às mesas do Will’s Cofee-House. Mais tarde vim a conhecer muito bem o Sr. Addison e o Dr. Swift, e cheguei mesmo a ser um amigo íntimo do Sr. Pope, que conheci e respeitei até ao dia da sua morte. Todavia, dado que é sobre o meu mais recente associado, o Dr. Johnson, que de momento desejo escrever, omitirei os anos da minha juventude para me concentrar no presente. Tive pela primeira vez conhecimento do doutor, em Maio do ano de 1738, embora por esses tempos ele ainda me não tivesse sido apresentado. O Sr. Pope acabara de completar o epílogo de suas Sátiras (começando essa peça com: "Nem duas vezes por ano você aparecer na imprensa"), e eu decidira fazer todas as diligências necessárias à sua publicação. No mesmo dia em que esse livro viu a luz do dia, também se publicou uma sátira ao estilo de Juneval, intitulada "Londres", escrita pelo então desconhecido Johnson, e esse poema surpreendeu a cidade de tal modo, que muitos cavalheiros de bom gosto chegaram mesmo a declarar que se tratava de um trabalho bem maior do que os do Sr. Pope. Apesar de tudo o que alguns detratores disseram acerca da inveja mesquinha do Sr. Pope, este acabou por elogiar os versos do seu rival e, tendo tomado conhecimento, através do Sr. Richardson, acerca da identidade do poeta, disse-me "que o Sr. Johnson em breve seria deterré."


Não conheci o doutor pessoalmente, até 1763, quando ele me foi apresentado na Mitre Tavern pelo Sr. James Boswell, um jovem escocês de muito boa família e de grande conhecimento, mas de engenho limitado, cujas efusões métricas eu já revira ocasionalmente.

O Dr. Johnson, tal como o vi, era um homem gordo e corpulento, muito mal vestido e de aspecto desmazelado. Ainda me lembro que ele usava uma cabeleira desgrenhada, sem ter um nó atrás nem estar empoada, demasiado pequena para a sua cabeça. A sua roupa era de um castanho cor de cinza, muito amachucada, e onde faltava mais do que um botão. O rosto, demasiado cheio para ser bem-parecido, estava também afetado por uma doença escrofulosa, e a sua cabeça estava sempre a balançar numa espécie de movimento convulsivo. De fato, eu fora informado acerca dessa sua enfermidade, tendo ouvido o Sr. Pope mencioná-la, após este ter procedido a alguns inquéritos sobre esse assunto.


Tendo quase setenta e três anos, ou seja, sendo dezenove anos mais velho do que o Dr. Johnson (digo doutor, embora o seu grau académico só tenha sido obtido dois anos depois), era natural que esperasse que o mesmo tivesse alguma consideração pela minha idade, logo, nunca senti dele o receio que outros chegaram a confessar. Quando lhe perguntei o que pensava sobre a favorável resenha que eu escrevera acerca do seu Dicionário, em The Londoner, o meu jornal periódico, ele disse-me: "Caro senhor, não me recordo de ter lido a sua resenha, e não tenho um grande interesse pelas opiniões da parte menos intelectual da Humanidade." Tendo ficado bastante agastado com esta sua falta de civilidade por parte de uma pessoa cuja celebridade me fizera interessado pela sua aprovação, aventurei-me a responder-lhe da mesma maneira, dizendo-lhe que estava surpreendido que um cavalheiro de bom senso devesse julgar a intelectualidade de alguém cuja produção ele nunca admitira ter lido. "Ora, caro senhor", respondeu Johnson, "eu não tenho que me familiarizar com os escritos de uma pessoa para que possa ter uma noção da superficialidade das suas realizações, quando esta mostra com suficiente clareza ao mencionar as suas próprias produções na primeira pergunta que me coloca." Tendo desse modo ficado amigos, conversámos sobre muitos assuntos. Quando, para concordar com ele, lhe confessei que não acreditava muito na autenticidade dos Poemas de Ossian, o Sr. Johnson retorquiu: "Isso, caro senhor, em nada beneficia a compreensão, pois aquele perante quem toda a cidade se mostra interessada, não deverá ser uma grande descoberta para um crítico de terceira classe. Do mesmo modo, creio que o senhor poderia dizer que tem uma forte suspeição de que Milton escreveu o Paraíso Perdido!"

Depois disso, passei a ver Johnson frequentemente, sobretudo durante certas reuniões no CLUBE LITERÁRIO, que o doutor veio a fundar no ano seguinte, juntamente com o Sr. Burke, o orador parlamentar; o Sr. Beauclerk, um cavalheiro muito elegante; o Sr. Lagton, um homem muito religioso e capitão da Milícia; sir J. Reynolds, o famoso pintor; o Dr. Goldsmith, escritor de prosa e de poesia; o Dr. Nugent, sogro do Sr. Burke; sir John Hawkins, o Sr. Anthony Charmier e eu próprio. Geralmente, reuníamo-nos uma vez por semana, às sete da noite, na Turk’s-Head da Gerard Street, no Soho, até essa taberna ter sido vendida e convertida numa residência privada; após, tivemos que mudar, sucessivamente, os nossos encontros para a Prince, na Sackville Street, Le Tellier’s na Dover Street e para a Parsloe’s e para a The Thatched House na St. James Street. Durante esses encontros, conseguimos manter um nível apreciável de convivialidade e companheirismo, que contrastava, muito favoravelmente, com algumas das Dissensões e Interrupções que observo na imprensa literária e amadora de hoje em dia. Essa tranquilidade era ainda mais notada pois tínhamos entre nós cavalheiros com opiniões muito diferentes. Eu e o Dr. Jonhson éramos Tories convictos, enquanto o Sr. Burke pertencia aos Wigs23 e era contra a Guerra Americana, tendo muitos dos seus discursos acerca do assunto sido largamente publicados. O outro simpático elemento era um dos fundadores do grupo, o Sr. John Hawkins, que, desde então, já escreveu várias más representações da nossa sociedade. Sir John, um sujeito excêntrico, recusou-se um dia a pagar a sua parte da despesa pela ceia, pois, em sua casa, nunca ceava. Mais tarde, insultou o Sr. Burke de um modo tão intolerável, que todos nos esforçamos por lhe mostrar a nossa desaprovação, após o que ele deixou de comparecer nas nossas reuniões. Contudo, ele nunca chegou a cortar relações com o doutor, tendo sido o executor do seu testamento, embora o Sr. Boswell e outros tenham razões para questionarem a sinceridade dessa mesma relação. Outros membros do clube, alguns deles mais tardios, foram o Sr. David Garrick, ator e velho amigo do Dr. Johnson; os Srs. Tho. e Jos. Warton; o Dr. Adam Smith; o Dr. Percy, autor das Relíquias; o Sr. Edward Gibbon, o historiador; o Dr. Burney, o músico; o Dr. Malone, o crítico; e o Sr. Boswell. Foi com grande dificuldade que o Sr. Garrick acabou por ser admitido, pois o doutor, apesar da grande amizade que tinha por ele, esforçava-se sempre por denegrir o palco e todas as coisas que com o mesmo se relacionassem. Johnson, de fato, tinha o hábito muito peculiar de se pôr do lado do Davy quando os outros o atacavam; e de o acusar, sempre que os outros o tentavam defender. Não duvido que ele apreciasse sinceramente o Sr. Garrick, pois nunca se referiu a ele como ao Sr. Foote, que era um sujeito muito grosseiro apesar do seu génio para a comicidade. O Sr. Gibbon nunca foi dos mais apreciados, pois tinha uns modos arrogantes e muito irritantes, capazes de ofenderam mesmo alguns de nós, que tanto admirávamos os seus trabalhos de História. O Sr. Goldsmith, um homem baixinho, muito vaidoso no modo de vestir e muito deficiente nas artes da conversação, era o meu favorito, dado que também eu me mostrava incapaz de discursos brilhantes. Este tinha imensos ciúmes do Dr. Johnson, se bem que gostasse dele e o respeitasse. Ainda me lembro que um dia, um estrangeiro, creio que um alemão que se encontrava entre nós, reparou, enquanto Goldsmith falava, que o doutor estava a se preparar para dizer qualquer coisa. Inconscientemente, ao olhar para Goldsmith como uma espécie de pedra que lhe obstruísse o seu caminho, quando comparado com esse grande homem, o estrangeiro interrompeu-o ostensivamente e acabou por provocar a sua ira ao declarar: "Shash, Toctor Shonson vai falar!" Nessa ilustre companhia eu era tolerado mais devido à minha idade do que ao meu engenho e aos meus conhecimentos, não estando à altura de poder desafiar nenhum dos outros. A minha amizade em relação ao célebre monsieur Voltaire era sempre um motivo de aborrecimento para o doutor que era muito ortodoxo, e que continuava a afirmar acerca do filósofo francês: "Vir est acerrimi ingenii et paucarum literrarum." (Esse homem tem um acérrimo engenhoso e poucos dotes literários.)

O Sr. Boswell, um pequeno indivíduo muito provocador que eu conhecera há já algum tempo, costumava falar acerca dos meus modos desastrados, da minha velha cabeleira e das minhas roupas. Uma vez, tendo bebido um pouco mais do que a conta (era viciado na bebida) tentou falar de mim através de uma improvisação em verso escrito no tampo da mesa, porém, não dispondo da ajuda a que ele costumava recorrer sempre que escrevia, cometeu um erro gramatical. Bem lhe disse que não deveria ser tão ligeiro quando escrevesse. Outra vez, Bozzy (como lhe costumávamos chamar) queixou-se do meu azedume em relação aos novos artigos dos escritores que eu estava a preparar para a The Monthly Review. Disse que eu empurrava cada aspirante a escritor pelas vertentes do Parnaso. "Caro senhor", apressei-me a responder-lhe, "está muito enganado. Os que perdem o equilíbrio, fazem-no por falta de força de vontade, porém, desejando esconder essa fraqueza, atribuem a sua ausência de sucesso ao primeiro crítico que os menciona." É com alegria que recordo que o Dr. Johnson me apoiou nesta questão.

Este eminente doutor não tinha par, quando se tratava de se dar ao incomodo de rever maus versos escritos por outros. De fato, há quem diga que, no livro da pobre idosa cega, a Sr.a Williams, não se encontram duas linhas que não pertençam ao Dr. Johnson. Numa ocasião, ele recitou-me alguns versos de um criado do duque de Leeds, que o tinham divertido tanto que ele até os memorizara. São acerca do casamento do duque e, assemelham-se tanto à qualidade do trabalho de outros assassinos de poesia mais recentes, que eu não resisto em copiá-los.
Quando o duque de Leeds for casado
Com uma bela donzela a seu lado,
Que feliz ficará ele em seu agrado
E perante a população de Leeds obsequiado.

Perguntei ao doutor, se ele alguma vez tentara fazer sentido dessa peça, e, logo que ele me disse que não, eu diverti-me com a seguinte emenda acerca da mesma:


Quando o galante de Leeds auspiciosamente se casar
Esse distinto ser de vetustos antepassados sem par,
Como a noiva cheia de vivo orgulho irá ficar
Perante esse esposo ilustre que ela irá ganhar!

Logo que mostrei isto ao Dr. Johnson, ele disse: "Meu caro, já vejo que o pé não se encontra tão quebrado, no entanto, essas linhas não têm a menor agudeza nem qualquer tipo de poesia."


Dar-me-ia imenso prazer comunicar algo mais acerca da minha experiência com o Dr. Johnson e o seu círculo de engenhosos amigos, mas já não sou nada novo e canso-me com facilidade. Pareço divagar, sem grande lógica ou continuidade, sempre que tento invocar o passado e sinto que me atardo em alguns incidentes que os outros nunca discutiram. Se estas minhas reminiscências obtiverem êxito, talvez eu venha a escrever mais alguns episódios acerca dos velhos tempos, dos quais sou o único sobrevivente. Lembro-me ainda de muitas coisas relacionados com Sam Johnson e o seu clube, tendo permanecido membro do mesmo bem para lá da data da sua morte, que, sinceramente, me encheu de desgosto. Ainda recordo de que modo o morgado John Burgoyne, o general, cujos trabalhos dramáticos e poéticos vieram a ser publicados postumamente, foi recusado

por três votos, talvez devido à sua infeliz derrota na Guerra Americana, em Saratoga. Pobre John! Creio que o seu filho foi mais bem-sucedido e veio a adquirir o título de baronete. Mas estou demasiado fatigado. Já sou velho, muito velho, e já são horas para a minha sesta da tarde.



Tradução original: José Manuel Lopes, correções desse blog.

3 comentários:

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